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IGREJA LUSITANA - COMUNHÃO ANGLICANA

Igreja do Torne

Do esquecido lugar do Torne à conhecida escola e igreja do mesmo nome
 
Quando, em Vila Nova de Gaia, se fala do Torne, poucos associarão esta designação a um antigo lugar por onde passa a demarcação entre as freguesias de Santa Marinha e Mafamude. O Torne é a Escola ou quando muito, para os mais informados, a Escola e a Igreja, a ponto de um notável historiador gaiense afirmar mesmo que “se não fora a existência da Escola e da Igreja do Torne, hoje este topónimo já não existia na cidade de Vila Nova de Gaia”[1].
 
A origem do nome, aliás, é curiosa. Recua pelo menos até ao século XVIII, registando os documentos dessa época a designação de Tornete, Meeiros e mais tarde Torna-meeiros, parecendo aludir a uma certa indefinição dos limites das duas freguesias e à circunstância dos moradores desse lugar num ano se desobrigarem em Mafamude e no seguinte em Santa Marinha[2]. Teria esse carácter “fronteiriço” contribuído para que em 1868 Diogo Cassels tenha escolhido esse lugar para mandar construir a Escola que lhe “roubou” o nome? Cremos que não, se bem que não deixe de ser curiosa essa coincidência no percurso de um homem cuja vida e acção se talharam sempre “entre duas margens”, como o expressa o próprio título da brilhante biografia de Diogo Cassels que muito recentemente foi publicada [3].

É na verdade muito difícil, para não dizer impossível, abordar a história da Escola e Igreja do Torne sem que simultaneamente se apresente a figura singular e a notável história de vida de Diogo Cassels (1844-1923), o seu fundador e dinamizador durante mais de cinquenta anos.

James (ou Diogo, nome português que adoptou) foi um dos filhos de um negociante britânico estabelecido em Portugal. Nascido no Porto, desde muito jovem dedicou o seu tempo e bens a tarefas de evangelização. A partir de 1866 realiza em sua casa reuniões para as quais convidava os operários da estamparia que administrava, vizinhos e amigos. Aí faziam orações, leituras de trechos bíblicos e entoavam hinos  religiosos. Detido pelas autoridades por alegado crime de proselitismo e desrespeito à religião do Estado, em 1868 Cassels foi julgado e condenado a seis anos de deportação, pena anulada pelo Tribunal da Relação.

Nesse mesmo ano, porém, Diogo Cassels fundava a Escola do Torne, em edifício que servia simultaneamente de capela para o culto evangélico, a primeira construída no País destinada a portugueses. A capela foi edificada “sem forma de templo (...) e cercada por um muro, de maneira que os transeuntes não [a] pudessem ver da via pública”[4], medida de prudência justificada pela legislação pouco tolerante da época em relação a religiões distintas da oficial católica-romana. Esta capela, porém, não era a actual – que só viria a ser construída em 1894 – mas o edifício principal voltado para a Avenida da República, que durante mais de vinte anos terá servido simultaneamente como sala de escola (à semana) e casa de oração (aos domingos). Por isso, se em 1868 Cassels mandou erguer uma capela “sem forma de  templo”, hoje em dia alguns poderão  estranhar ver uma escola com forma de capela!... o que naturalmente se explica pelo que dissemos.

Nos anos subsequentes o trabalho desenvolve-se e ganha crescente implantação no meio social: ao ensino elementar, com frequências anuais na ordem da centena de crianças de ambos os sexos, juntam-se uma creche, aulas nocturnas para adultos e cursos secundários; funda-se uma sociedade mutualista, uma caixa económica para operários e abre-se um "gabinete de leitura" com jornais e uma biblioteca.

Em 1875, a escola é ampliada com um edifício anexo de dois pisos e em 1879, tendo um forte temporal derrubado o muro alto que isolava a igreja da via pública, este não voltou a ser reerguido, pelo que a Escola-Capela do Torne ficou então mais visível e começou a assumir mais declaradamente o seu estatuto, o que teria continuidade em 1882, com o alteamento da fachada e colocação da cruz na empena, e em 1888, data em que se ergueu a torre para o relógio.

Em 1880 Cassels e a sua congregação tinham já aderido à recém-organizada Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica. Instituído Diácono e ordenado Presbítero na Igreja Lusitana, Cassels continuou a ocupar toda a sua vida e recursos à pregação da Palavra de Deus, à educação e assistência aos mais carenciados, aspectos que entendia complementares no testemunho cristão e espírito de missão que o orientavam.

Em começos de 1893, Diogo Cassels inicia a publicação de um periódico, que intitulou primeiro Capella do Torne e pouco depois Egreja Lusitana. No primeiro número, anunciava: “Como a capela actual acha-se pequena para a Congregação, já fiz aquisição de um terreno contíguo à mesma e tenciono logo que Deus me proporcionar os meios fazer outra maior, transformando a actual em uma Escola, visto que a casa da Escola também é pequena para conter os alunos”[5]. Pouco depois iniciaram-se as obras para a construção do novo templo, que dedicou a “S. João Evangelista” e seria inaugurado na primavera de 1894, proporcionando melhores condições ao culto divino e libertando espaços para uma actividade educativa em franca expansão.

A obra de Cassels, porém, não se confinou ao lugar do Torne. No início da década de 1880 assumira já quase na íntegra os custos da construção de outra capela e respectiva escola, a do “Redentor”, na Rua Visconde de Bóbeda (Porto), aberta ao culto em 1883. Em 1901 inaugurou ainda no Arco do Prado (Gaia) outra Escola e Igreja – a actual Paróquia Lusitana do Salvador do Mundo, que aliás celebra este ano o seu centenário – igualmente construídas a expensas próprias e de donativos que angariava.

Além do ministério na igreja que fundou e serviu, do trabalho educativo e social, Diogo Cassels dirigiu durante 32 anos, até à sua morte, o jornal Igreja Lusitana, para divulgação das actividades da igreja e escola do Torne, promovendo a formação e edificação cristã de crentes e não crentes. Em 1906 compilou em livro a Reforma em Portugal, onde dá conta dos esforços para a renovação da mentalidade religiosa e para a dupla e inseparável tarefa da evangelização e alfabetização das populações.

Diogo Cassels foi condecorado como Benemérito da Instrução (1908), recebeu a Comenda da Ordem de Cristo (1922) e em 1910 viu o seu nome ser atribuído à antiga Rua do Torne, tendo-lhe posteriormente sido erigido um busto no Jardim do Morro (1938).

A AETP assume hoje em dia a continuidade da acção educativa e de assistência social de que Diogo Cassels foi pioneiro nos lugares do Torne (desde 1868) e do Prado (desde 1901). Com meios diferentes, naturalmente, e tentanto responder a questões e desafios bem distintos dos de há cem anos, mas seguramente animada e tendo sempre no horizonte o exemplo de fé e doação plena desse verdadeiro servo de Deus ao serviço das crianças, homens e mulheres do seu tempo que foi James Cassels, o filho de ingleses nascido em Portugal que muitos tratavam carinhosa e familiarmente apenas por Sr. Dioguinho.

A. M. S.


[1] Gonçalves Guimarães – “O lugar do Torne. Estudo de microtoponímia gaiense”, em Gaia de há Cem Anos. Colóquio....., V. N. Gaia: Junta Paroquial de S. João Evangelista, 1995
[2] Idem.
[3] Fernando Peixoto – Diogo Cassels: uma vida em duas margens, V. N. Gaia: CMG, 2001.
[4] Anónimo [Diogo Cassels] - A Reforma em Portugal... (1906), cit. por António Manuel S. P. Silva – “As duas Igrejas do Torne...”, Bolet. Cult. Amigos de Gaia, 40, V. N. Gaia, 1995.
[5] Capella do Torne, Fev. 1893, cit. em A. M. Silva, “As duas igrejas...”